
O vídeo do Felca prestou um serviço público: escancarou a adultização, a sexualização e a exploração de crianças nas redes sociais. Com uma clareza necessária, expôs como adultos — frequentemente os próprios responsáveis — transformam a infância em produto para gerar audiência e receita. Meu apoio à iniciativa é total. A denúncia não é apenas legítima, mas urgente, e já deveria ter provocado respostas firmes das plataformas, das autoridades e da sociedade.
O que me preocupa, contudo, é o movimento oportunista que se articula nas sombras desse debate. Sob o manto justo da proteção infantil, atores políticos tentam contrabandear uma regulação generalista das redes, fundamentada em conceitos vagos e poderes elásticos. Meu ponto é este: proteger crianças é um dever inegociável; assinar um cheque em branco para controlar o debate público é uma armadilha inaceitável.
A Denúncia e Sua Importância Inquestionável
O mérito da exposição de Felca é inegável. Ela parte de uma premissa factual: existe conteúdo que explora a imagem e a dignidade de menores em troca de monetização, uma prática eticamente repulsiva e juridicamente criminosa. O efeito catalisador do vídeo organizou o debate público e expôs falhas críticas de prevenção, moderação e responsabilização. Por isso, o foco deve permanecer onde pertence: na proteção de crianças e adolescentes, com medidas concretas, mensuráveis e auditáveis — e não na criação de um aparato regulatório para “tudo o que acontece nas redes”.
Onde Mora o Perigo: A Distorção da Pauta
A tentativa de converter um combate específico a crimes contra menores em justificativa para uma regulação ampla do ecossistema digital segue um roteiro conhecido:
- Instrumentaliza-se a comoção social para apressar propostas legislativas complexas e mal debatidas.
- Inserem-se termos abertos e indeterminados — como “desinformação sistêmica”, “discurso de ódio” ou “conteúdo nocivo” — que carecem de definição legal objetiva.
- Abre-se a porta para a discricionariedade, permitindo remoções de conteúdo e punições desproporcionais que podem ser usadas para fins políticos.
No limite, cria-se um mecanismo de controle de opinião travestido de boa intenção. É aqui que o oportunismo revela sua face mais perversa: o desejo de blindar reputações, intimidar opositores e arbitrar o que pode ou não ser dito em nome de uma suposta “proteção”. Não podemos confundir proteção com poder.
Liberdade de Expressão: Limites Claros, Garantias Intocáveis
A liberdade de expressão não é um escudo para o crime. Exploração infantil não é opinião, é crime, e deve ser combatido com o máximo rigor. Da mesma forma, calúnia, difamação e incitação à violência já são condutas tipificadas em lei. O que não se pode admitir é o uso de conceitos elásticos para criminalizar pontos de vista e silenciar o dissenso. A opinião, ainda que controversa, é inviolável.
O Caminho Certo: Ações Focadas para Proteger Crianças
A resposta eficaz não reside em atalhos autoritários, mas em ações técnicas e cirúrgicas:
- Tipificação e Penas: Endurecer o enquadramento legal para quem produz, compartilha e monetiza conteúdo que explora menores, com responsabilização clara dos adultos que os instrumentalizam.
- Deveres Claros às Plataformas: Estabelecer obrigações de resultado, como prazos para remoção de conteúdo manifestamente ilegal, preservação de provas, cooperação com autoridades e relatórios de transparência trimestrais com métricas verificáveis.
- Devido Processo e Defesa: Garantir mecanismos de contestação para remoções, com logs auditáveis e acesso a uma revisão judicial célere.
- Reforço Investigativo: Investir em perícia digital, delegacias especializadas e na integração entre Polícia, Ministério Público e Judiciário.
- Educação e Prevenção: Implementar letramento digital massivo em escolas e para famílias, com campanhas contínuas sobre sinais de alerta e canais de denúncia.
As Linhas Vermelhas: O Que uma Lei Séria Não Deve Fazer
Qualquer proposta legislativa deve respeitar limites intransponíveis para não se converter em censura:
- NÃO pode criar tipos penais com termos vagos que punam opiniões.
- NÃO pode instituir conselhos de moderação com poder de veto sobre o discurso.
- NÃO pode exigir licença estatal para a criação de conteúdo.
- NÃO pode impor a identificação civil universal para o uso de redes sociais.
- NÃO pode punir plataformas por conteúdo lícito, apenas por pressão política.
Meu Posicionamento
Reafirmo minha posição, que é dupla e inequívoca:
- Apoio irrestrito à denúncia de Felca. É um marco de coragem e responsabilidade cívica.
- Rejeição frontal ao oportunismo político que sequestra uma causa nobre para avançar agendas de controle do discurso.
Conclusão
Proteger nossas crianças é um dever. Proteger nossa liberdade, uma condição para uma sociedade justa. Não podemos sacrificar uma em nome da outra. Que o debate sobre a proteção da infância avance com a seriedade e a urgência que merece, mas com foco, precisão técnica e transparência. Se a legislação começar a se afastar disso para regular o que adultos pensam e dizem, saberemos que a comoção virou pretexto para o poder. E a nossa resposta deve ser clara: sim à proteção da infância; não ao aparelhamento do debate público. A infância não pode esperar, e a liberdade não pode ser negociada.